Exemplo de uma das imensas formas de fazer (restabelecer?) a ligação entre a literatura que se estuda na aula e a vida (um contributo para inspirar o vosso Diário Poético; claro que a ideia não é fazer igual, nem sequer tão extenso):
foto R
Imaginem um “mil folhas” da melhor pastelaria que conheçam. Estaladiço, leve, aéreo, mil folhas soltas, tendo pelo meio um delicioso e voluptuoso creme de pasteleiro, nos intervalos do folhado e do ar. Por cima, uma artística cobertura de chocolate e açúcar a lembrar a espuma do mar. Saído há pouco do forno, perfumado, morno, sedutor. Agora imaginem que alguém vos coloca à frente esse mil folhas e depois começa a retirar-lhe a deliciosa espuma do mar que o cobre e... deita-a fora! À vossa vista. Prossegue deitando fora camada a camada, as películas de massa folhada e o delicioso creme; termina oferecendo-vos a última camada, a de baixo, já sem vestígios da sensualidade do creme. O desejo é tão forte e a tortura foi tal, que não têm coragem para recusar essa última folha, que, apesar de tudo, até é saborosa. Sabe, no entanto, a pouco. Imaginam então, pelo pequeno prazer, o prazer maior que seria saborear o bolo todo. Não é pelo facto de apenas vos ter sido oferecida a parte de baixo que passam a abominar os “mil folhas”.
Foi isso que aconteceu comigo e com o estudo de Os Lusíadas. Retiraram-me tudo: a musicalidade do texto, a magia de alguns episódios, o imenso universo de conhecimento, o emocionante labirinto narrativo que também é, a sensualidade do canto nono, a atraente loucura de algumas personagens, os inebriantes perfumes das especiarias, e deixaram-me a última camada: a divisão de orações. Nem isso me impediu de amar profundamente aquela obra. Poderia tê-la amado ainda mais, como agora amo, que já a conheço melhor. Foi pouco o que me deram, foi pobre, foi curto, foi redutor, foi até um pouco mentiroso, mas não me retirou o prazer do texto. É claro que teria sido melhor se eu tivesse tido o prazer de ouvir um professor que ao mesmo tempo fosse um bom leitor, lendo para mim, com entusiasmo, algumas passagens, sem me cobrar nada, pelo simples prazer de o fazer, e de o fazer para mim, se eu tivesse sido encorajada a conhecer melhor as histórias dos deuses, esses humanos tão aspirantes à divindade, se me tivesse sido proporcionado chorar e lamentar o Adamastor enquanto arquétipo de todo o infeliz amante, se me tivessem sido proporcionadas outras leituras que ampliassem o universo que existe às vezes cifrado no texto, se pudesse ter saboreado com aroma de canela um verso do episódio da tromba marítima que é assim:
Estava-se co as ondas ondeando...
Se me tivesse sido dado saborear neste verso todo um universo ondulante de um “mil folhas” delicioso causador de um agradável torpor e de um leve e subtil enjoo correspondente ao balanço de uma onda suave...
Um mil folhas é uma construção de jangadas sobrepostas e Os Lusíadas são um “mil folhas” recheado e coberto de espuma do mar e música e ritmo.
Estava-se com as ondas ondeando...
Sujeito: nós?, o Vasco da Gama?, os marinheiros?, os portugueses?, indeterminado?, ou eu?, sei lá quem é o sujeito, talvez o Camões, sei lá, um qualquer marinheiro roto, esfomeado e com escorbuto, se a minha professora d’Os Lusíadas descobre que depois daquele esforço todo, nesta idade, continuo sem saber quem é o sujeito que estava ondeando com as ondas...
Estava-se com as ondas ondeando...
Predicado: “estava-se”... Então…já não se está? Não se voltará a estar? E isto é um predicado, ou... um facto consumado? Uma aflição? Já não há mil folhas feitos de ondas? Ó professora, tanto trabalho para... afinal... Os Lusíadas estão desactualizados? É por isso que querem retirá-los do programa? Eu prometo que divido as orações com os meus alunos, eu prometo rezar todas as orações que quiserem, eu prometo ir a pé à Índia dentro de uma caravela, ou em cima de mil “mil folhas”, eu prometo aprender com o Vasco da Gama a rezar à Divina Guarda, eu até rezo ao divino Baco, mas não nos tirem Os Lusíadas do programa de Português...please!!!...
Um dia experimentei ler uns excertos d’Os Lusíadas a umas crianças pequeninas, umas cobaias, tipo a minha filha versão primeiro ciclo e outros que apanhei na altura desprevenidos, ainda não era proibido. Como receio que brevemente venha a ser. De modo que lá lhes li uns bocados... E não é que os putos... gostaram?!
Estava-se co as ondas ondeando...
As crianças pequeninas sempre amaram a música, as artes e as coisas inúteis e as coisas difíceis como a astronomia e o cálculo, antes de a escola lhes retirar esses prazeres e as atulhar em mil folhas compactos com massa gordurosa e densa e de as afogar em informação inútil que qualquer enciclopédia rasca contém.
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